Morrer não é clickbait
- Rica Pessetti
- 13 de abr.
- 3 min de leitura

Morrer, hoje, não basta. Precisa de legenda. De justificativa. De enquadramento ideológico. Acontece um assassinato e, antes que o corpo esfrie, já tem analista de ocasião transformando o sangue em sintoma, a lâmina em linguagem. A morte virou ponto de partida, quando devia ser o fim de qualquer conversa.
No caso de Matsunaga, o que era pra ser repulsa virou peça publicitária. Ela matou, esquartejou, dividiu em malas. Mas o que se discutiu não foi só o crime, foi o crime justificado. “Ele era escroto”, diziam. “Ela estava acuada.” De vítima virou personagem. De assassina, símbolo. A execução virou nota de rodapé. A brutalidade foi reeditada em narrativa progressista. Como se a violência ganhasse ética quando bem argumentada. Como se a dor fosse um álibi permanente pra tirar a vida de alguém.
Do outro lado, a série Adolescência traz os garotos que matam porque ninguém os olhou. Incels, órfãos afetivos que encontraram no ódio o único reflexo possível. Rejeitados, fizeram da frustração um manifesto. E então atiraram. E de novo, a explicação vem rápida: “ninguém ouviu”, “a sociedade falhou”. Como se solidão fosse combustível legítimo pra massacre. Como se todo abandono criasse o direito de exterminar.
O casal influencer fez da própria ruína um canal. Brigas publicadas, facadas gravadas. O relacionamento era uma performance de autodestruição. Ela o fere, ele a mata, e o público engaja. Os seguidores aumentam. As opiniões se dividem como se fosse debate de reality show. Ninguém parece notar que, ao fundo, dois corpos. Reais. Irreversíveis. A morte virou thumbnail.
Mari Munhoz matou o amigo e passou a viver como ele. Assumiu a vida do outro como quem troca de conta no Instagram. E o que poderia ser lido como um gesto monstruoso virou pauta sobre saúde mental, sobre exclusão, sobre identidade. Novamente, o morto é coadjuvante. Quem mata vira metáfora.
O mesmo discurso atravessa os fóruns, os grupos, os canais subterrâneos de internet onde jovens se alimentam do ressentimento. Casos como os crimes do Discord, onde adolescentes planejam e executam assassinatos com base em ódio misógino, são só a consequência do que foi cultivado em silêncio: a ideia de que mulheres são culpadas pela infelicidade masculina. A ideologia redpill, travestida de desenvolvimento pessoal, ensina que controlar, manipular, punir é uma forma de “reconquistar valor”. E quando isso se mistura com carência, despreparo e algoritmo, o resultado é previsível: um discurso que empurra meninos ao abismo e ainda oferece palco quando eles caem levando alguém junto.
E é assim, aos poucos, que a morte está sendo editada. Pelas redes, pelos discursos, pelos filtros morais de cada bolha. Já não se respeita o fim — se interpreta. Cada assassinato vira estudo de caso. O crime é recortado, posicionado, ressignificado. A análise entra no lugar do luto. O silêncio cede ao engajamento.
Mas a morte não se presta a isso. Morte não é storytelling. Não é gatilho pra debate. A morte é o limite. É onde tudo se rompe, até a linguagem. E é por isso que ela precisa voltar a ser inviolável. Inaceitável. Indiscutível.
A vida — não o trauma, não a causa, não a tese — a vida é o que importa. É o que resta. E quando ela se apaga, o que deveria vir não é torcida, é recuo. Não é aplauso ou argumento, é interrupção. Porque o instante em que alguém mata é o instante em que a sociedade deveria se calar. Não pra omitir. Mas pra não tentar fazer do irreparável uma peça retórica.
E que não se diga que tudo isso é loucura ou descontrole social. Não é. É política. É projeto. A radicalização de jovens homens, o culto à masculinidade violenta, o discurso contra mulheres, contra minorias, contra o que é sensível ou cuidadoso — tudo isso é matéria-prima para o extremismo autoritário. Quando um menino mata dizendo que odeia mulheres, ele está repetindo, de forma radicalizada, o que líderes da extrema direita dizem com mais elegância e menos pudor. Quando alguém justifica a violência com argumentos ideológicos - e bíblicos, por que não? -, está participando, mesmo sem saber, de uma trama onde a morte é só mais um instrumento de poder. É cálculo. É estratégia. É a guerra cultural posta em prática com faca, com bala e com silêncio cúmplice.
A cultura do like, do “entenda o caso”, do engajamento emocional, está transformando a morte em entretenimento de alta performance. A cada novo crime, o debate se organiza em campos. A vítima desaparece. O algoz ganha microfone. E quem assiste escolhe lado como quem escolhe time.
Mas não há justiça onde a vida vira entalhe. Não há verdade onde o fim precisa ser explicado. Ou a gente volta a entender que viver é o bem mais radical que há — ou vai sobrar só isso: vídeos com sangue, comentários com bandeira, e nenhum vestígio de humanidade no meio.
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